Pedro Félix Machado

Como citar (norma Chicago)
Soares, Francisco. “Pedro Félix Machado.” Kicola: livros e leitores em Angola no século XIX. Editado por FS. FS. 2020. https://kicola.xn--svisto-bxa.com/p/pedro-felix-machado.html (acedido em 29 de jul de 2022).


Lamentavelmente, ao fim de tanto tempo aqui disponível, este ensaio passou, segundo o blogger, a integrar "software malicioso" sem que eu tenha mexido nas hiperligações. Isso o tirou de circulação. Para tentar resolver o problema, fui desfazendo hiperligações, com manifesto prejuízo para o ensaio e para os leitores. Por agora, pelo menos, teremos de avançar assim mesmo, pois o blogger não diz qual a hiperligação maliciosa. A partir do momento em que a página foi reposta (terá desaparecido o software malicioso), deixei de retirar as hiperligações, mas faltam algumas aqui.

A obra e a figura de Pedro Félix Machado foram caindo no esquecimento, muito poucas vezes interrompido. O Angolense lembrou-o no princípio do século XX, Júlio de Castro Lopo um tanto mais tarde, Carlos Ervedosa refere-o, Mário António estudou-o, em pesquisa mencionada por Tânia Macedo e Rita Chaves e, mais recentemente, Nelson Pestana, para além de mim próprio. A isto se resume, tanto quanto saiba, a sua fortuna crítica, tirando alguns artigos que o referem de passagem, ou que só lhe estudam aspetos particulares e pouco mais que de passagem. 

Em boa parte, ficou a dever-se este geral esquecimento à raridade das suas obras. A republicação, pela IN-CM, dos Sorrisos e desalentos e de Scenas d’África – ? – romance íntimo, tornou-se, então, fundamental. Os prefácios trazem novas informações sobre a biografia e a cultura literária ou humanística do escritor. As obras, no entanto, falam por si, revelando-nos um talento raro e atualizado, capaz de ombrear com os do seu tempo no espaço lusógrafo. Enquanto poeta ele terá sido menos prolixo, mas mais rigoroso (por influência também de escolas literárias diferentes) e atualizado que J. D. Cordeiro da Mata; enquanto prosador foi mais prolixo e mais complexo que Alfredo Troni. De um momento para o outro, a sua figura avulta na história literária do país e da época de uma forma que o leitor comum não podia supor há uns anos atrás: único, original e oportuno.

De facto, não sabíamos muito sobre a sua figura. Carlos Ervedosa, que nos facultou o primeiro Roteiro de leitura da nossa história literária, escrevia só que, “segundo consta”, Pedro Félix Machado era o autor do livro Sorrisos e desalentos (Ervedosa, [1979]). Era assim mesmo, nesse tempo, pouco sabíamos, apenas 'constava que'. Segundo M. Ferreira e G. Moser, na sua Bibliografia, o editor teria sido a Gazeta de Portugal (Ferreira, et al., 1980 p. 97). Verifica-se agora que foram os “Editores, Ferin & Cª”, que já tinham publicado a ficção do autor (Oliveira, 1997 p. 113; Lopo, 1963 p. 30). A Gazeta de Portugal cedera apenas a tipografia, instalada em Lisboa na Rua da “Atalaya”, nº 42. Como diz Ervedosa, essa Gazeta divulgou, sim, enquanto periódico, os folhetins do que veio a ser o romance (Ervedosa, [1979] p. 33). A Bibliografia daqueles autores era, porém, importante, porque registava a existência de um exemplar na livraria do Congresso. Isso constituiu uma pista decisiva, que me levou aos intermináveis índices dessa livraria, existentes na Biblioteca Nacional de Portugal (a de Lisboa), para adquirir as necessárias cópias do livro – antes ainda de descobrir que havia um segundo exemplar na biblioteca da Fac. Letras da Univ. do Porto, resultante de uma doação recente. 


Júlio de Castro Lopo informou-nos que Pedro Machado foi advogado provisionário (quer dizer: sem possuir formação académica em Direito; no Brasil intitulava-se provisionado) durante vários anos em Luanda, e que advogou também em Benguela (pelo menos em 1880 e quando lá publicou A semana). Em Benguela também, no ano de 1893, exerceu interinamente funções como Delegado do Ministério Público. Deve ter havido várias estadas ou estadias do poeta em Benguela (Machado, 2004 p. 9ss), visto que aí localiza um soneto, ou em 1870, ou em Março de 1880 (Pestana, 2012; Machado, 2000 p. 14). A segunda referência coincide com as informações extraídas a uma crónica cheia de ironia, subtileza e urbanidade que foi publicada no Jornal de Loanda (no qual o poeta colaborava a partir de Benguela), em 8.12.1880 (R, 1880 p. 2). A primeira data (1870) não deve referir-se ao nosso parnasiano, que por essa altura teria 10 anos. Havia, porém, um P. F. Machado, "sem emprego", no "vapor inglês Norfolk", que veio de Lisboa para Luanda com "M. A. de Castro Francina, empregado público", um "J. N. de Figueiredo, artista" e possivelmente o poeta e comerciante "J. B. Ferrão, incluído no grupo dos "caixeiros" pelo Boletim Oficial n.º 13, de 25.3.1865 (p. 60). Não parece provável que o poeta viesse com 5 anos de Lisboa sem a família acompanhando-o. Se aquele "P." e aquele "F." querem dizer "Pedro Félix", então seria um homónimo, talvez parente.

As informações nessa crónica recolhidas acrescentam novos dados, que já listei no prefácio aos Sorrisos e desalentos e repito aqui:

1) Satirizando sobre a Philarmonica da polícia local, desafinada e ensurdecedora, diz que “o nosso amigo Félix Machado foi dormir para a Catumbella, visto ter consumido durante os ultimos ensaios [da Filarmónica] todo o papel sellado de 60 reis, que tinha o Zé dos Bois”. Isto não só prova a sua presença na cidade, sugere também que deve ter sido o nosso autor um prolífico “requerimentista”.
2) A segunda informação foi também fornecida com particular ironia: “Benguella já se vae emancipando da rotina, e isto é uma prova. / E querem mais? Então a graxa do lustro que se vende em toda a parte, os annuncios de livros instructivos como o Almanach de Lembranças, as peças archeologicas ambulantes, como o cavallo de Félix Machado, os projectos de carreira de omnibus para a Catumbella, não são verdadeiras manifestações de progresso?”.
3) A terceira vem da assinatura: “S y R”, ou seja, “Sabino & Romano”, imitando siglas comerciais. O duplo pseudónimo não se deslindava, porque o autor confessava ter medo das reacções de alguns benguelenses. Porém, no periódico benguelense A semana, quando era seu editor e redator assumido Pedro Machado, há um “Romano”, que assina crónicas ou polémicas com o mesmo pitoresco e a mesma ironia que estas, profusamente ilustradas e onde o desenho de figuras é usado analogicamente, como se fossem hieróglifos, suportando uma informação narrativa que dispensa, naquele momento, a escrita[1]. É curiosa esta ligação da crónica à imagem visual, inovadora também e recorda-nos o parentesco de Pedro Félix Machado com Julião (Félix) Machado, para além de sugerir que, se não era o próprio redator que se escondia sob pseudónimo, era alguém muito próximo dele[2]Sabino tem, aliás, a mesma inicial que o nome de um seu sócio de escritório em Lisboa a que me vou referir ainda.

A vida em Benguela deve ter sido rodeada por quesitos, polémicas. O caso não foi único, já o mesmo tinha sucedido com Maia Ferreira. Uma personalidade com traços de fácil invetiva, de frontalidade, palavras fortes, denúncia direta, que me parecem comuns aos dois poetas, havia de facilitar as quezílias, em pequena urbe mal controlada pelo poder distante de Luanda e Lisboa - de resto eles também cercados e infestados pela corrupção. Um certo causídico, António Fernandes de Oliveira Monteiro ("filho de Luanda" e "advogado provisionado nos auditorios de Benguela" como o poeta), chegou a publicar um folheto, provavelmente no ano de 1894, em que o alvo principal é Pedro Félix Machado. O folheto se intitulou, sintomaticamente, A África não se civiliza. Nele o autor se revolta contra "intrigas odiosas e vinganças mesquinhas de que o fizeram vítima, revela crimes e aponta criminosos, contra os quais requer procedimento criminal pelos meios legais". Ora, o primeiro nome apontado é o do nosso poeta e da seguinte maneira: "o folheto em questão é uma verdadeira bateria matematicamente assestada contra Pedro Félix Machado, Leovegildo Augusto Nogueira de Figueiredo e António Gomes Correia." O jornal onde se publica a curtíssima recensão é O Futuro d'Angola, de Arcénio de Carpo, no nº 206 (14.6.1894), na p. 2 (páginas não numeradas). O folheto mostraria porque, "em África só progridem, só enriquecem, bandidos e ladrões." A liça era, portanto, entre filhos de Luanda com língua muito solta e me evoca o estranhamento que até hoje me assalta por, apesar de terem convivido na mesma cidade, Augusto Bastos (integracionista lusófilo e defensor dos filhos da terra) nunca o mencionar. Parece-me da parte desse filho de Benguela, um silêncio educado.

A presença de Pedro Félix Machado em Benguela, em 1893, é posterior ao regresso de Portugal e de Espanha, países por onde passou entre Dezembro de 1890 e Abril de 1892. Escrevo isso porque entre as duas balizas cronológicas surge a maioria dos poemas datados (e são-no quase todos). É natural que tenha estado antes em Lisboa, pois localiza aí dois outros sonetos: um de Novembro de 1881[3] e o segundo de Dezembro de 1889 (Machado, 2004 p. 10). Se não houve gralhas nem disfarces, então esteve três vezes em Portugal até 1892 (Machado, 2004 pp. 13-14). Qualquer delas depois da composição das primeiras peças, que já se podem considerar parnasianas - o que demonstra, mais uma vez, que, ao optarem pelo Ultrarromantismo, os seus companheiros de geração não desconheciam as alternativas.

Quanto à estadia mais prolongada, é de se notar o dado coincidente de Julião Machado iniciar a sua carreira, segundo Julieta Ferrão, em Lisboa, em 1890, pela cofundação da Comédia portugueza (que dirigiu com Marcelino Mesquita). Julião Machado viera para Lisboa de Coimbra, para onde fora enviado a estudar. Em Lisboa publicou as primeiras caricaturas em O diabo coxo, em 1886 e na Revista ilustrada, em 1888, segundo Sandra Leandro. 

Esta coincidência é de se notar porque a vinda do poeta, nos fins de 1880, coincide com a consolidação da carreira artística do irmão caçule (Julião nascera em Luanda a 19.6.1863). A fundação da revista, segundo estudo recente, deve-se à herança paterna e, portanto, é de calcular que ambos os irmãos tenham nessa altura desfrutado da herança e que Pedro Félix Machado aproveitasse, não só para acompanhar Julião, mas também para conviver em Lisboa no círculo boémio e artístico dele (o do «Leão d’Ouro», dos Bordalo Pinheiro e de Fialho de Almeida), para firmar escritório de solicitador-advogado com seu sócio, para viajar por Espanha e, eventualmente, resto da Europa (pelo menos o seu irmão, Julião, terá morado em França entre 1892 e 1894).

O regresso de Pedro F. Machado a Angola e a sua presença em Benguela dão-se pouco depois de Abril de 1892, não em 1893, visto que a 20 de Novembro de 92 inicia, na velha cidade crioula, o periódico A semana. Para além da subscrição das crónicas de “Romano”, há muitas informações interessantes a recolher nessas páginas, no primeiro número reservadas quase unicamente a anúncios, por opção própria. Mais uma vez as transcrevo do prefácio aos Sorrisos e desalentos:

1) As que se extraem do anúncio, logo no n.º 1 (na última página), da firma de solicitadores de Pedro Machado e Sertorio S. Corte Real, sediada na Travessa da Assumpção, nº 40, 2º, em Lisboa. Este anúncio mostra que, ao vir para Benguela, o autor deixara sociedade constituída na capital portuguesa, mantendo portanto interesses que lhe proporcionavam mais um canal de comunicação (pelo menos de sustentação financeira) com a sociedade lisboeta. O nome de Sertório deve-lhe ter sugerido o pseudónimo jornalístico ‘Romano’.
2) As que se extraem do anúncio de um opúsculo de Eduardo Braga sobre a injustiça da sua prisão. Este anúncio recorda a Minuta do Agravo do Despacho de Pronúncia de Eduardo Braga, assinada e editada pelo próprio P. F. Machado, que a imprimiu na tipografia de A semana (no n.º 1 do jornal essa era a tipografia Progresso, de Benguela também). Por este anúncio, é de supor que a Minuta, que não vem datada, saísse a público em 1892 ou 1893. Tal opúsculo, típico da tradição cronística e da polemística angolenses do fim do século passado, mostra ainda mais uma vez a atualização literária do seu autor (leitor de Poe) e a sua excelente oratória.
3) As que se extraem do anúncio, logo no n.º 2, das Scenas d’Africa / ? / romance íntimo e dos Sorrisos e desalentos, chamando-se a atenção do leitor para a prestigiada casa editora. É a partir deste segundo número que Pedro Machado, que assinara o editorial anterior, aparece como editor e redator.
4) Ainda ao nível das relações literárias, o autor mantinha-se informado sobre a vida artística portuguesa, como era de esperar, dada a carreira de sucesso do irmão e pelas suas próprias ligações empresariais. Mas não só com a literatura portuguesa: no nº 14, o folhetim é um extrato de O bufarinheiro, de Guy de Maupassant (1850-1893; começa a publicar em 1875), outro autor ligado ao fantástico.
5) Os vários números demonstram que o escritor se mantinha informado sobre a Alemanha também. No nº 8 do periódico, na última página, há curiosas notícias sobre actividades dos “deputados socialistas alemães” e de uma “associação de socialistas patriotas e anti-semitas” da mesma nacionalidade. Quem estudar as origens do nazismo, encontrará aqui um dos episódios mais recuados da fusão do conceito de proletariado com a ideia de povo alemão e do conceito de burguesia com a de judeu e estrangeiro. Já no n.º 10, noticia-se o falecimento de um antropólogo germânico em Bona (p. 3). Em parte, as informações lhe viriam da “distincta escriptora e inspirada / poetisa allemã / M.me Hedovig Wiger Barsh” (houve gralha, trata-se de Hedvig Wigger Barsh), a quem os Sorrisos e desalentos são dedicados, “como homenagem / ao seu bello talento critico”.
6) O autor continuou a escrever folhetins após as Scenas d’África, pois publicou-os, sob a sigla PM, nos números 2, 8, 10 e 21[4]. Só no primeiro número o folhetim vem na segunda página: nos outros faz o fundo da primeira, procedimento nesse tempo habitual. O terceiro folhetim passa-se no Dombe Grande e o seu narrador é autobiográfico (talvez também o seja no segundo), tratando-se de uma estória muito próxima do que hoje classificamos como fantástico. Os nomes destes folhetins são: «Livre» (nº 2), «Em Flagrante» (nº 8), «Ossos do Ofício» (nº 10) e «Realismos» (nº 21). A sequência de folhetins publicados pode ter contribuído para que mais tarde Augusto Bastos (com cerca de 20 anos nesta altura) se interessasse por essa espécie, folhetinesca, praticando-a várias vezes até chegar ao “romance policial” do repórter Zimbro. Curiosamente, no entanto, Augusto Bastos, que várias vezes na vida se deve ter cruzado com Pedro Félix Machado, nunca o refere nos textos em que tanto fala das figuras de Benguela nesse tempo. Terá havido querelas envolvendo o seu pai ou ele próprio? Do tipo das que são referidas em folheto por António Fernandes de Oliveira Monteiro (v. O futuro de Angola. Luanda, 14.6.1894. Ano XII, nº 206, p. 2). 
7) Na p. 2 anuncia-se que abrirá, “logo que haja o número sufficiente de alumnos”, uma “aula nocturna” com “as seguintes disciplinas”: Francês, Inglês, Caligrafia e Taquigrafia, Esgrima (florete) e “Lições Praticas” de Direito Cambial e Jurisprudência. Provavelmente era o próprio redator quem leccionava as matérias, razão pela qual afirmei que o poeta foi professor também na cidade de Benguela.

Hoje, podemos acrescentar alguns dados mais. Pedro Félix Machado nasceu em Luanda cerca de 1860 (Pestana, 2012 p. 8), irmão mais velho de Julião Machado e, possivelmente, das filhas de António Félix Machado, filhas a quem os amigos salvaram do incêndio da sua casa na década de 1870. Era o que sabíamos até há pouco tempo. Entretanto, investigação recente feita por Luís Henriques nos revela, com base em um passaporte que lhe foi passado (para Benguela), que o ano de nascimento de Pedro Félix Machado foi o de 1853, em julho ou agosto. Era, portanto, quatro anos (e quase meio) mais velho que Joaquim Dias Cordeiro da Mata, nascido em Icolo e Bengo no dia de natal de 1857. 

Dos seus progenitores falei já no primeiro capítulo desta obra, sendo o pai um português (açoriano) que foi do Recife para Angola e a mãe uma angolana da família Amaral Gourgel (Ana Joaquina do Amaral Gourgel (Pinto, 2012 p. 16)), a mesma família (a julgar pelo apelido Amaral) da companheira luandense e benguelense de Maia Ferreira, mãe de sua filha Ana e que, sobretudo neste ramo (Amaral Gourgel), apresenta ascendentes (e descendentes) brasileiros. Luís Henriques, seguindo Bonavena no ensaio citado, não coloca o sobrenome Gourgel, substituído pelo de casamento: Ana Joaquina do Amaral Machado, nascida em Luanda. No entanto Filipe Zau, também na esteira (inconfessada) de Bonavena (Nelson Pestana), em artigo do Jornal de Angola (Os descendentes de Pedro Félix Machado), mas sem indicar fontes, assegura que a mãe do poeta era Amaral Gourgel, filha de Pedro Maria do Amaral Gourgel e Catarina da Costa, angolenses também. 

O sobrenome Gourgel, para além de reforçar a componente brasileira na ascendência de sua mãe, torna-se importante por motivos próximos. É que F. do Amaral Gourgel assinara, com Eusébio de Queirós Coutinho da Silva (pai do político Eusébio de Queirós), o manifesto a favor da independência de Angola sob proteção do Brasil, em 1822. A posição dele era mais prudente que a de Eusébio de Queirós, pois achava que os angolenses deviam ser consultados acerca do que fazer, mas a inclinação para a chamada 'confederação brasílica' estava patente. Ou seja: estaremos perante um casal que, por via da família materna, se ligava a independentistas ou autonomistas ‘brasileiros’ e, por via dos negócios do pai, se ligava ao Recife e ao Rio de Janeiro, bem como ao romancista e folhetinista português Júlio César Machado pela ascendência açoriana. No Recife, um Joaquim "Felis" Machado mantinha loja no Pátio do Hospital do Paraíso, com número D16, segundo anúncio do Diário de Pernambuco publicado a 25.2.1837 (n.º 45, p. 3). Penso que era irmão de António Félix Machado. 


Em alguns negócios, sobretudo no início da sua carreira comercial, o pai (António Félix Machado) esteve bastante próximo de conhecidos negreiros, como o pai de José da Silva Maia Ferreira. O caso polémico da apreensão do navio Bella Ângela, meses depois da morte do pai Maia Ferreira (a quem o navio pertencera antes), envolve o nome de António Félix Machado, embora sem o incriminar seja no que for. Ele partiu para Angola nesse navio (em 1844), que seria acusado pelos ingleses de se fazer ao mar para trazer escravos ...no regresso. Os nomes envolvidos na viagem podem ser quase todos, indireta ou mesmo diretamente, relacionados com negreiros antigos (ou ainda em atividade). Mas é também verdade que, nesse tempo ainda, quem quisesse progredir rapidamente nos negócios tinha de se articular com os negociantes que dominassem as redes comerciais e os transportes marítimos entre Angola e Brasil. António Félix Machado levava consigo "4 volumes de fazendas" e um nome que não identifico, "B. da C. F. Machado", carregava "71 volumes de fazendas". António Félix Machado e Arsénio Pompílio Pompeu de Carpo eram dois dos destinatários das mercadorias. Como se sabe, o último esteve até muito tarde envolvido no tráfico negreiro e também o pai do poeta era acusado de ter operado uma falsa reconversão ao mero comércio de produtos entre Portugal e Brasil com Angola e Cabo Verde por tabela. António Félix Machado, depois de apreendido o navio e retidas as mercadorias (eram distribuídas entre Inglaterra e Portugal) retomou a viagem para Angola ("por Benguela"), a partir do Rio, sendo "despachado" a 23.11.1844. 

A vistosa fortuna que o filho terá herdado e a história social da família materna, lhe alimentaram certamente preconceitos que revela, sobretudo, em Cenas de África, mas também, de passagem, em raros versos dos Sorrisos e desalentos. São preconceitos que destoam num romance realista (que, porém, me parece de um realismo limitado e misto), mas não impediram o Angolense, no princípio do século XX, de o recuperar enquanto nome patrológico, tal como não impediram Cordeiro da Mata de cooptar, a esse mesmo título, o nome de Joaquim António de Carvalho e Menezes. A verdade é que a elite luandense do século passado era extremamente conservadora e preconceituosa no que diz respeito aos seus pergaminhos, costumes e genealogias - entretanto várias, aliás, diversas. Isso foi muito bem representado em A Casa velha das margens, de Arnaldo Santos, que precisamente incide sobre a mesma época. 

Mas os preconceitos sociais de Pedro Félix Machado visavam a rudeza, a ignorância, a boçalidade, o não saber falar, a falta de refinamento e educação que tanto apontava aos seus compatriotas quanto aos colonos e aos "indígenas de Lisboa". Para ele, como para muitos, a maioria dos colonos eram degredados ou gente com pouca educação, de má índole, que também não sabia falar ou escrever bem o português. Acusava-os, ainda, de se comportarem ali adotando os piores hábitos locais e de, em Benguela, serem tão gananciosos que os benefícios do seu comércio ficavam neutralizados ou se tornavam malefícios (conforme escreve em A semana, nº 10, 6.4.1892, citado por Henrique de Carvalho em África Ilustrada: Arquivo de conhecimentos úteis, vol. I, fascículo 1, 14.8.1892, p. 319). Ou seja, eram preconceitos, mas visavam (por via negativa, sem dúvida) suscitar empenho no aperfeiçoamento moral e social dos angolenses, que se deviam distinguir desses colonos degradados. De resto, a visão que dá de todo o ambiente luandense no qual a ação principalmente se desenrola é a de um filho da terra, como bem tinha notado Mário António em A formação da literatura angolana. Não digo que o seja pela montagem ideológica, mas mesmo pelo que revela conhecer e refere de figuras locais e de famílias locais, algumas com membros de seu convívio e amizade, como a família Toulson. 

Segundo Nelson Pestana, Pedro Félix Machado realizou estudos em Portugal na década de 70 do século XIX. Parece-me possível, até pode ser que tenha frequentado mais do que um curso superior, porque revela, nas Scenas d'África e em um dos folhetins de A semana, conhecimentos técnicos relacionados com a medicina, sendo no entanto advogado provisionário. Terá, pelo menos, passado por São Tomé cerca de 1870, conforme carta citada por Bonavena (Nelson Pestana) a Carlos da Silva, carta que data de 1890. Um poema eventualmente escrito lá em 1870, que pode ser uma data fictícia (teria 17 anos, mas o poema não parece de adolescente), mantém no ar a hipótese de ele ter estudado em Lisboa, embora tivesse feito estudos primários em Luanda. Publicou, segundo Nelson Pestana, em Angola um primeiro soneto, no Cruzeiro do Sul, em 1875 (Lisboa: IN-CM, 2004, p. 16), mas a sua produção datada é bem posterior, como referi no prefácio a Sorrisos e desalentos (Lisboa: IN-CM, 2000). Esse poema inicial, a que Nelson Pestana se refere a partir de um artigo ("Notas cobertas") de João Eusébio da Cruz Toulson em O sol de Angola (nº 18, Luanda, 15.1.1893), teria sido composto, não com 15 anos, mas, levando em conta a nova data de nascimento (1853), com 22 anos, o que é plausível.

Ao contrário do irmão (Julião Machado, que se matriculou no primeiro ano em Coimbra), não terá vivido no Brasil (Pestana, 2012 p. 9) – ou, pelo menos, não terá conhecido Olinda, cidade na qual imaginou uma Faculdade de Medicina muitos anos antes de ela ter sido criada ali, melhor dito, no Recife (a criação da Faculdade de Medicina de Olinda foi aprovada em …2013, a do Recife em 1915). Uma vez que lá imaginou a Faculdade no seu romance, tratando-se de uma obra de arte isso não implica, necessariamente, ignorância, desconhecimento, mas deixa-nos a desconfiar de que podia não conhecer aquela zona, de que apenas terá ouvido o pai falar (e, no tempo do pai, que bem conhecia o Rio de Janeiro, onde foi várias vezes depois de estar instalado em Luanda, as Faculdades de Medicina eram na capital carioca e na Bahia, em Salvador). Enfim, terá profetizado sem querer... Mas os autores projetam sobre seus textos, mais que circunstâncias autobiográficas, os limites dos seus conhecimentos e não foi por acaso que, apesar de a personagem principal de Scenas d'África ter ido ao Brasil mais de uma vez, e de ter estudado em Olinda, não foi por acaso que ele não descreveu nada do Brasil, ao passo que fala de Lisboa mostrando conhecer a vida local e fala de Madrid mostrando conhecer a cidade. 

O nosso parnasiano foi professor em Luanda, na Escola principal, tanto quanto Fernando Gouveia (o futuro Dr. Duprat) e, gratuitamente, na ilha de Luanda, em sua casa (cf. Pestana, 2012 pp. 9, 12, alicerçado na leitura do Boletim oficial de 22.12.1884). Também lecionou em Benguela, a julgar por um anúncio de A semana que já referi no prefácio aos Sorrisos e desalentos. O Governador Ferreira do Amaral nomeou-o, a 28.7.1884, “vogal do conselho inspector de instrução pública” (Pestana, 2012 p. 11); dias antes (9.7.1884) era nomeado professor interino da terceira cadeira da Escola Principal. Era, por esse tempo, conceituado especialista na língua quimbundo ('quimbundista', como se escrevia). Dois anos mais tarde, a 20.5.1886, obteve uma primeira licença do cargo de professor, que se prolongou em outra (de 11.8.1886), até que foi substituído. 

No seio do grupo que publicava no Jornal de Loanda (praticamente os escritores todos daquele pequeno burgo), a figura de Pedro Félix Machado constituiu extraordinária exceção. E se, no que diz respeito à narrativa, ombreou com o mentor Alfredo Troni e seu realismo, no que diz respeito à lírica manteve-se único até hoje.

O seu campo de leituras foi mais diversificado que o da maioria dos seus colegas, incluindo eventualmente Alfredo Troni, que também foi leitor com múltiplos interesses. Pela Minuta do Agravo do Despacho de Pronúncia de Eduardo Braga, percebemos que Félix Machado conhecia as estórias fantásticas de Edgar Allan Poe, sendo o único a mencioná-las na sua geração. Não somente, aliás, as menciona como também compõe uma estória que se aproxima do género ("extraordinário", fantástico e um tanto policial) e publica-a, como disse no prefácio aos Sorrisos e desalentos, em A semana de Benguela.

Scenas d’África, que li por parcelas na BNL e depois na edição da IN-CM, foi já tratada com dedicação por Nelson Pestana e tinha sido antes abordada, parcialmente, por Mário António. As leituras de Eça de Queirós (1845-1900) tornam-se evidentes na sua narrativa, que as terá partilhado com Troni, que por sua vez terá convivido com Eça em Coimbra. Mas é claro que não nos explicam a estrutura e o alcance da obra, muito mais vastos. 

O livro Sorrisos e desalentos ajuda-nos a completar o seu quadro de leituras. A obra é sintomática, entre outros motivos porque esclarece com precisão relações literárias de que não havia conhecimento seguro até hoje, para além de meras coincidências anotadas em estudo anterior (Soares, 2012). Além disso, o livro obriga-nos a rever o quadro e as datas do advento de uma lírica não romântica no país.

A sua atualidade confirma-se por um sensualismo palpável, que se tateia na sugestão visual de corpos, excitando os sentidos, em particular o da visão. Justamente nos antípodas da lírica intimista de Maia Ferreira, como da maioria da geração de 1878. Isso, na época, era característico do parnasianismo (não falo só de sensualidade numa aceção hoje comum, mas também com o significado próprio da palavra, relativo ao que vem pelos sentidos).

Vários versos dão visibilidade a relações e aspetos sociais locais, a partir das quais ridiculariza pessoas típicas (Machado, 2000 p. 8), ironiza sobre a política (Machado, 2000 pp. 16, 33), certas práticas religiosas (Machado, 2000 p. 18), as dos usurários[5], a da “nephelebatofobia”[6] (Machado, 2000 p. 13), etc.. Na maioria deles ressalta o pendor para a visualização já referido, que aliás combina com a perspicácia do cronista bem humorado - que por outra via foi também Julião Félix Machado.

De facto, acompanha essa atualidade uma pena de cronista notável (Machado, 2004 p. 12), o mesmo que reportava a vida social de Benguela para o Jornal de Luanda em Dezembro de 1880 e seguramente o mesmo que escreve também as Scenas d’África.

A vivacidade da obra lírica vibra no seu vocabulário, que é variado, por vezes elegante e atento aos novos termos, outras coloquial, como convém à linguagem de um cronista e de uma pessoa convivente, conversável, advogado e comerciante. Recordo alguns versos, ilustrativos também da sua ironia: “Mauricio do high-life”, “roer a corda n’um contrato” (Machado, 2000 p. 7), “Um dia Satanaz arma-lhe a rede, / E arranja no menage [...]” (Machado, 2000 p. 9), “e tem massa encefálica tão fraca / Que nem caldo daria, suculento: / ­—Diverso é o pé-de-boi, da mão de vaca!...” (Machado, 2000 p. 8), “meteu dedos á bocca, n’um cantinho, / A vêr se punha a máquina mais sã” (Machado, 2000 p. 12), “Tal como da platina a breve trama / Se abrasa na corrente que transmite, / Minha alma s’encandesce, e a dinamite / Do cérebro em delírio, me inflama!” (Machado, 2000 p. 20), “Pois falta-lhe o pendant... perde o valor!” (Machado, 2000 p. 21), “E o homem tenta, os sofrimentos seus / Vencer, adormecendo a consciência, / Buscando os anestésicos nos Céus” (Machado, 2000 p. 34).

Esta linguagem reúne traços típicos da mais saborosa crónica polémica da época em Angola, que refletia acutilante os tiques sociais da urbanidade angolense junto com a de outras pelo poeta visitadas. Há sinais localizadores que remetem para crenças, por exemplo, ou mesmo para uma sintaxe diferenciada; mas o uso deste vocabulário, a par da composição dos tipos, por seu turno, recorre a traços universais, próprios de uma comunidade que se vai internacionalizando a partir dos seus portos de mar.

Há passagens que remetem para crenças quando nos falam, por exemplo, no medo que tem a moça de lhe dar um retrato, com “receio que ele me enfeitice” (Machado, 2000 p. 50). Seguindo a crença, a reprodução da imagem da pessoa leva consigo algo da alma da pessoa e, por esse motivo, através de um retrato se pode jogar feitiço sobre a retratada. Por mais que seja partilhada com outros povos, temos aqui uma suposição firmemente local.

Outro exemplo nos mostra como, apesar do rigor com que escrevia, até a sintaxe podia alertar-nos para uma diferença localizada - embora aconteça com raridade. Em «Retrato à pena», de que falo adiante outra vez, ele vê que “a boca faz sonhar no Paraíso...”. Se lermos o poema, não é “no Paraíso”, mas na terra, que a boca faz sonhar. O verso, no contexto, parece pedir outra leitura: “a boca faz sonhar com o Paraíso”, ou “faz pensar no Paraíso”. Se agora nos lembrarmos da sintaxe do pombeiro Pedro João Baptista, ou do cabíri João Vêncio, percebemos que se trata aqui do português de Angola, igualmente praticado em vários quotidianos do que veio a ser o país hoje: ouvindo falar nas ruas da Luanda de hoje podemos confirmar a mesma variação, em que “no”, ou “em”, substitui “com o”. Se, por outro lado, lermos com atenção a lírica e as cartas de Maia Ferreira deparamos, de vez em quando, com tais deslizes gramaticais - que o são relativamente à norma portuguesa, na qual os dois autores foram formalmente ensinados.

A inserção de Pedro Félix Machado no mundo literário corresponde a estes traços estilísticos de forma geral, ora locais ora, sobretudo, cosmopolitas. Para a considerarmos ainda mais em pormenor, o melhor é partirmos do levantamento das suas relações nesse campo.

Elas tinham sido já consideradas por Mário António, que refere o Realismo e o Naturalismo, quer por convívio com Alfredo Troni, quer diretamente, uma vez que o seu atraso em relação “aos centros de produção de que se dependia” era inexistente ou quase (Oliveira, 1997 pp. 112-113, 117). Nelson Pestana confirma isso mesmo. No que diz respeito ao convívio com o autor de Nga mutúri, quando reporta o poeta e romancista na “tertúlia literária que gravita em torno do Jornal de Loanda”, dirigido por Alfredo Troni (Machado, 2004 p. 9), jornal onde colaborou. No que diz respeito à sua atualização literária, o prefácio de Bonavena em grande parte a comprova. E logo explicitamente quando sublinha que, nos seus artigos, o poeta se mostrava “um homem informado sobre o mundo em transformação que já era o seu e procura respigar para o meio africano as grandes polémicas da época” (Machado, 2004 pp. 9, 17ss) – o que pude comprovar ainda nas páginas de A semana e, claro, nos Sorrisos e desalentos. Esse é o retrato geral da posição intermédia que viveu Pedro Félix Machado: no meio-termo entre dois tempos e vários espaços, numa semiosfera de fronteiras instáveis.

O “quase inexistente” a que se refere Mário António não é de todo injusto, é impreciso. A retórica do ensaísta vinha “colocar em relevo o talento do poeta”, como percebe Nelson Pestana (Machado, 2004 p. 17). Concordo com o prefaciador em que Pedro F. Machado está ao nível do que melhor se fazia na altura “na sua escola literária” (Machado, 2004 p. 17). Se nos lembrarmos de outras escolas e experiências do século XIX, tornadas muito mais significativas depois do Modernismo, é claro que se justifica o “quase”. Só que não relativo a um “atraso”, mas à diversidade disponível. Pedro Machado mostra ser informado e participa da criação da própria escola no que diz respeito à lusografia e ao parnasianismo. Não revela aí leituras artisticamente revolucionárias, apreciadas depois pelos modernismos – a do simbolismo, por exemplo, a de Nerval e de Baudelaire. E a referência a elas, aliás, vem tarde para Angola. De maneira que o “quase” de Mário António pode aplicar-se à incompletude, inevitável, da tradução para o meio de notícias e práticas literárias globais. Não é um quase no atraso, mas no alcance, na extensão, na variedade.

A leitura dos Sorrisos e desalentos completa as considerações anteriores, na medida em que nos permite estabelecer pontes com uma escola coetânea da realista, a dos parnasianos, e muito em particular a de João Penha (29.4.1838 - 3.2.1919) e a de Olavo Bilac (16.12.1865 - 28.12.1918).

Na verdade, sobretudo no que diz respeito a João Penha, os parnasianos, não só foram coetâneos dos realistas, misturaram-se com eles. Podemos confirmar isso mesmo pela convivência do poeta minhoto com Eça de Queiroz, Antero de Quental e Guerra Junqueiro, ou por alguns escritores editados em A folha, de Penha – Guilherme Braga (1845-1874), o autor de Os falsos apóstolos e de O Bispo, ainda que também tradutor do Atala, de Chateaubriand; Teófilo Braga, Guilherme de Azevedo, Gomes Leal, o próprio Antero.

Mas o parnasiano português separava bem as águas. Ele entendia a criatividade artística de um ponto de vista de inteira liberdade pessoal, insubmissa a regras ou princípios ideológicos que a limitassem. Tal fio condutor, comum a Bilac e ao parnasianismo em geral, é que nos permite classificar Pedro Félix Machado como poeta parnasiano, mas não realista. Aliás, não só tal fio condutor, outros aspetos ainda, incluindo as afinidades estruturais e formais com João Penha e peças de A folha.

Uma breve leitura da biografia do irmão do poeta alerta-nos para ligações biográficas (ainda que indiretas) aos parnasianos e não somente aos realistas. Entretanto, podem ser tardias... 

Socorro-me, para fazer a leitura comparativa, das contribuições de Júlio de Castro Lopo e de Julieta Ferrão, somadas a parcelas de algumas outras. As informações biográficas citadas por Mário António (Oliveira, 1997 p. 112), a propósito de Pedro Félix Machado, são as que Júlio de Castro Lopo forneceu, como o próprio Mário António indica nas notas bibliográficas. Havia poucas informações aproveitadas: a leitura do ensaísta de Luanda, «ilha» crioula incidiu mais sobre o texto, percebido nas suas relações com as problemáticas da época, do que sobre a personagem pública do autor. Não era um ensaio biográfico, nem tinha de ser. Não dá por isso atenção ao parentesco de Pedro Félix Machado com Julião (Félix) Machado (Machado, 2000 p. 17), laço decisivo para compreendermos a formação literária do sonetista angolano.

Julião Machado, como ficou para a História o seu nome, foi caricaturista muito considerado, ilustrador famoso, co-fundador (com Marcelino Mesquita) da Comédia portuguesa, colaborador em muitas revistas e jornais portugueses e brasileiros (neste país se destaca a sua colaboração no Jornal do Brasil). Foi também autor de várias peças de teatro: Primo Álvaro, Influência atávica (representada em italiano e português), O Suicídio de Juventino e Modêlo (1918).

Castro Lopo, em obra citada por Mário António (Lopo, 1963) e Carlos Ervedosa (Ervedosa, [1979] p. 30), chama a atenção para o facto de Pedro Félix Machado ser irmão do famoso caricaturista. Ele havia igualmente nascido em Luanda, calculava-se que no ano de 1862. A data deve-se corrigir para 19-6-1863, de acordo com tese de doutoramento recente, apresentada na PUC do Rio de Janeiro por Letícia Pedruzzi Fonseca. Julião Félix Machado seria, por isso, dez anos mais novo que Pedro Félix Machado. O ilustrador expirou em Lisboa em setembro de 1930 (Ferrão, 1930), bem depois do seu irmão. Dedica-lhe o poeta «Um soneto» dos Sorrisos e desalentos (Machado, 2000 p. 44). O soneto foi escrito em Lisboa em Novembro de 1891, sob sugestão do caricaturista para que se escrevesse começando por chave de prata e fechando com chave de ouro. Um exercício bizantino, mas que, tomado pela sugestão humorística, se aliviou de malabarices bacocas.

O humorismo que o caracterizava era um traço de personalidade comum aos dois irmãos, como já disse, mas agora repito a propósito dos sonetos de Pedro Félix Machado, que estão cheios de caricaturas e de ironias, tanto quanto as suas crónicas, quer para A semana, quer para o Jornal de Loanda.

Julião Machado foi amigo e protegido de Rafael Bordalo Pinheiro, “sob cujas asas [...] se iniciára na publicidade” e que lhe desenhou o retrato no seu jornal. Estas informações as trago do artigo citado de Julieta Ferrão, que remete, quanto à “iniciação”, para o periódico Pontos nos ii (7.5.1885-5.2.1891 no acervo disponibilizado, digitalizado a partir da biblioteca de Dulce Ferrão), onde comparece a poesia de João Penha (Penha, 1890). Coincidência, Pedro Félix Machado fala, em A semana (nº 10, p. 3), de Rafael Bordalo Pinheiro como “o nosso grande artista”. E as suas locais, quer em A semana quer em outros periódicos, em todos os aspetos a considerar filiam-se claramente no tipo de humor e de textos curtos publicados nesse periódico. Não sei quem os terá escrito no periódico português. Alguns estão assinados por dois pseudónimos, um (“pan-tarântula”) de Alfredo de Morais Pinto, que se manteve ligado ao jornalismo humorístico local; outro (“irkan”) de Fialho de Almeida, o conhecido escritor lusitano do mesmo grupo de Rafael Bordalo Pinheiro e José Malhoa e de que já falarei. Mas muitos dos textos curtos, alguns acompanhando desenhos, eram anónimos, tal como também alguns desenhos não vinham assinados.  

Julião Machado foi conviva de Columbano e estudou com José Malhoa, pintor que ficou famoso pelo quadro «O Fado», mas que foi muito mais que o autor desse quadro, justamente famoso. Outra ligação importante levou o caricaturista luandense a ilustrar O país das uvas (1895), de Fialho de Almeida (que fez estudos colegiais em Lisboa de 1866 a 1872), companheiro de tertúlia e de Realismo. O nome, não sendo necessário à compreensão do conhecimento poético do autor dos Sorrisos e desalentos, não deixará de indiciar afinidades na comunidade literária portuguesa da época. Segundo Nelson Pestana, essas afinidades, em termos de narrativa literária, são com o Realismo e o Naturalismo (Machado, 2004 p. 15ss) - como tinha afirmado Mário António. Pelo que vimos, do círculo boémio e artístico do irmão, quanto ao Realismo não pode haver dúvidas e também sabemos que o Naturalismo teve a sua defesa a circular por Angola nesse tempo. É sintomático ter alcançado Fialho de Almeida grande sucesso com Os gatos, panfleto mensal (e logo semanal) que iniciara a convite do editor de As farpas, de Ramalho Ortigão, em 1889, publicando-os até 1894 e reunindo depois tudo em seis volumes. Note-se a coincidência do período de publicação com A semana de Pedro Félix Machado, igualmente bem carregada de farpas, e com a maioria da produção literária do autor. Isto nos mostra, mais uma vez, a atualidade do nosso poeta no cenário lusógrafo da época, particularmente se articulado com a comunidade literária e artística lisboeta.

Julião Machado viveu no Rio de Janeiro, tendo colaborado durante 25 anos com a imprensa carioca, onde se tornou tão conhecido e respeitado quanto em Lisboa, ou mesmo mais. Tese recente, que referi atrás, atribui-lhe uma participação decisiva na mudança do padrão gráfico das revistas ilustradas brasileiras e fundamenta bem a sua asserção.

Tendo-o conhecido na sua estada carioca, o escritor e jornalista luso-brasileiro João Luso retrata-o passando dias inteiros deitado, fumando e a ler até que muito tarde se punha a desenhar furiosamente. O que interessa para o caso agora é o que leria ele, uma vez que daria notícia de, pelo menos, algumas leituras ao irmão, podendo mesmo enviar-lhe alguns livros. Segundo João Luso, passava horas a reler “páginas dos Goncourt, de Flaubert, de Eça de Queiroz ou de Machado de Assis”. Trata-se de cânones literários essencialmente ligados ao Realismo, ou entre Romantismo e Realismo, porém já próximos dos realistas, que foram publicando ao longo da segunda metade do século XIX e lhe forneciam tipos sociais – aproveitados pelos poemas do irmão. Sem dúvida que a ficção de Pedro Félix Machado está próxima deles – com a já assinalada fuga tímida (porque única) para o fantástico na estória do Dombe Grande, publicada em formato folhetim n'A semana de Benguela.

Quando Julião Machado pensou retirar-se do Rio definitivamente, compareceram muitos intelectuais, jornalistas e escritores brasileiros ao almoço de homenagem e despedida que lhe foi dedicado no «Club dos Diários». Entre muitos outros nomes, encontrava-se lá um poeta que se torna significativo para nos esclarecer sobre as relações literárias do irmão de Pedro Félix Machado: Olavo Bilac, o grande parnasiano brasileiro, autor de alguns dos mais belos sonetos da língua portuguesa (Poesias, 1888, 1902) - senhor de uma lírica sensual e, por vezes, bem-humorada como a de Pedro Félix Machado, e que tinha nascido três anos depois do caricaturista angolano seu irmão. Julião Machado emparceirou com Olavo Bilac na imprensa carioca, nomeadamente produzindo, segundo Letícia Pedruzzi Fonseca, dois periódicos famosos: A cigarra, criada em 9.5.1895 (ou seja, no ano a seguir ao da sua chegada ao Rio) e publicada até 16.1.1896; A bruxa, que saiu de 7.2.1896 a 30.6.1897. Segundo Sandra Leandro, o parnasiano brasileiro, pela simpatia que ele causava mesmo junto aos mais extremados nacionalistas, pôs-lhe a alcunha de “amansa jacobinos” (Leandro, 2015)

Esta ligação brasileira parece familiar à obra do irmão também, como facilmente se verá lendo-a. Pedro Félix Machado partilha com Bilac “a correcção e o casticismo da língua”, elevadas à condição de “virtudes básicas” na composição das peças e garantes da mais importante função social do poeta, “a guarnição das fronteiras da nossa literatura, que é toda a nossa civilização” (Franchetti, 2007 p. 34). Pedro Félix Machado acrescenta-lhe o uso de termos vincadamente modernos, em convívio natural (até parece espontâneo) com o restante léxico. Partilham também os dois poetas o rigor no ritmo, a clareza na referenciação, em definido contraste com as vagas e vagueantes sombras românticas, os oiros informes dos simbolistas, ou o barroquismo conceptual e esporádico de alguns intelectualistas como Antero de Quental.

A maioria dos Sorrisos e desalentos não atinge, no entanto, a profundidade humana, ou a intensidade estética, dos alentos e sorrisos de Bilac. Fica-se, não só mas principalmente, pelo retrato satírico de personagens da época, padronizadas embora concretas, descrevendo-as envolvidas por uma estória grotesca, ou pelo menos cómica – exceção feita a uma bela espanhola... Talvez isso não lhe venha de Bilac, nem só de João Penha, de quem falarei ainda e que terá sido a principal referência poética.

Há uma poesia parecida nesse aspeto, que é a de um brasileiro (mestiço, caso vos interesse), nascido pobre e no meio rural, hoje desconhecido, mas no seu tempo muito popular. Trata-se de Bernardino Lopes (1859-1916), “ou B. Lopes, como assinava os livros”. Ele publicou, em 1886, um volume chamado Pizzicatos, em que fazia praticamente o mesmo com relação à “vida elegante da nobreza e da alta burguesia” (Franchetti, 2007 p. 37). Antes, tinha-se tornado famoso com Cromos, que saiu em 1881, contendo 48 poemas e depois foi reeditado em 1896 com “o dobro dos poemas, divididos em duas seções: uma com o mesmo nome do volume e outra intitulada «Figuras», que são retratos femininos” (Franchetti, 2007 p. 37).

Não tenho como saber se o nosso poeta leu B. Lopes, mas este me parece um paralelo interessante, a explorar em futuras investigações. 

As semelhanças entre as duas obras são muitas, de facto são obras gémeas, cada uma de um dos lados do Atlântico-sul. As diferenças, para além de alguns aspetos formais, prendem-se mais com a diferença entre as pequenas sociedades das urbes coloniais angolanas e aquela do Rio de Janeiro, já em finais do século XIX. Em Angola não havia Viscondessas, Ministros, etc., como B. Lopes podia encontrar no Rio. Também Pedro Félix Machado não se centra tanto em relações ilícitas de mulheres casadas, embora várias vezes aborde o motivo e o tema. Bernardino Lopes conta estórias em que ele é o protagonista-galã, que tem os casos com as senhoras bem colocadas na alta sociedade carioca. Pedro Félix Machado privilegia a terceira pessoa, na focalização própria de quem assistiu ao episódio não participando. Mas a linguagem usada, o tipo de retrato e de humor com que se retrata, as pinceladas rápidas e certeiras das descrições, essas caraterísticas são partilhadas e estruturantes.

As relações parnasianas do poeta, nem que fosse apenas por via da leitura, estendiam-se também a João Penha, o português que mais afinidades apresenta com os irónicos sonetos de Pedro Félix Machado. Como pude verificar no livro anterior desta série (Soares, 2012), as opções estróficas dos dois apresentam uma coincidência quase absoluta. 

Vindo à luz pública dez anos após a saída em Lisboa da segunda edição das Rimas, contendo uma clara maioria de poemas escritos em Portugal, era natural que Sorrisos e desalentos fosse marcado por aquela obra. Há de facto notórias semelhanças técnicas entre os dois livros: o predomínio reverencial do soneto (comum a Bilac), o respeito vigiado pela uniformização ao nível das distribuições estróficas e rimáticas (ainda comum a Bilac), traços aliás parnasianos e, com menos rigor em alguns casos, realistas. 

No que diz respeito à distribuição das rimas, quase todas as composições do angolano (com um “quase” de apenas 3 peças) apresentam a mesma distribuição que João Penha no seu livro (ABBA / CDCDCD). É uma distribuição comum, canónica, mas a coincidência me parece demasiado forte para a dar como casual. 

Ao nível da motivação e das temáticas, a lírica de Pedro Félix Machado anda igualmente perto da de João Penha. A obra que principalmente nos interessa, pelas datas, são as Rimas, que terão saído em 1882, mandadas imprimir pela editora Avelino Fernandes na Imprensa Nacional, em Lisboa. A edição é dada como a segunda, razão pela qual me reportei a ela como “republicação” (Machado, 2000). Porém não encontrei, até hoje, qualquer primeira edição, nem anterior, nem do mesmo ano. Suponho, portanto, que as Rimas saíram só em 1882, ao menos para o grande público.

Ambas recorriam à ironia e à sátira (no sentido contemporâneo desta palavra). A ironia e a sátira foram praticadas pelos ultrarromânticos locais, quer em crónicas, quer em polémicas, quer em poemas. Ambas aparecem também numa obra que deve ter sido lida pela sua geração em Luanda, Paquita, de Bulhão Pato (colaborador, como Félix Machado, da Gazeta de Portugal). Ironizado numa composição contemporânea das de Pedro Félix Machado em Angola, Bulhão Pato foi, no entanto, um poeta lido e considerado por ultrarromânticos angolanos e talvez também pela sua ironia fina, domínio das subtilezas da vida entre elites, e conhecimento do mundo. Ligando o legado anterior ao parnasianismo, o nosso lírico atualizava a literatura angolana do seu tempo, mas também fortalecia pontes com outros sistemas literários e, neste caso particular, com Portugal.

A sátira de Pedro Félix Machado voltava-se geralmente sobre figuras e situações tipificadas, usando uma linguagem onde, ao rigor formal, acrescia um vocabulário popular, em convivência natural com uma expressão precisa, rigorosa e moderna. Isso também fazia João Penha. Tiro um exemplo ao acaso e cito-o porque o leitor o pode encontrar em rede: leia-se «Cena de taberna» (Penha, 1882 pp. 162-163), dedicado a Guimarães Fonseca e incluído nas Rimas.

O poema «Consolação» (Penha, 1882 pp. 164-165) usa outro estratagema que aproxima os dois autores. Antes de o descrever, abro mais um parágrafo para convidar o leitor a conhecer um texto em prosa publicado em A folha.

No primeiro número do microcosmos literário A folha, a seguir a uma participação de Guilherme Braga, surge uma curta estória assinada por “F.”, que se intitula, ironicamente, «Mysterios de Coimbra».

Não sei quem será o fulano “F.”. A estória está bem articulada com o propósito inicial da publicação, definido por João Penha no preâmbulo, e com o espírito geral que a anima. No começo da narrativa, dois amigos falam sobre um poeta, que um deles muito admira e o outro lhe aponta uma moça loira, bela, numa janela, que seria a musa do livro desse poeta (Maldonado). Articulam-se para que o admirador dos versos possa admirar a sua musa também. Ao pô-los em contacto, em casa da mãe, o leitor entusiasmado descobre que, por oposição ao que supunha, versos apaixonados não têm de vir de musas apaixonadas, sequer apaixonantes. A moça mostra um total desconhecimento da literatura, coisa que despreza, embora tenha conhecido o tal Maldonado. É maliciosa, insinuante, alegre, direta e muito prática… podemos dizer que o desenlace é disfémico.

A estrutura disfemística de que falo, comum a Penha e Félix Machado, consiste em perorar o poeta sobre um assunto sério, que suscita alguma delicadeza, ou nobreza, ou gravidade, ou sensibilidade pelo menos, e, no fim, em vez da chave de ouro, fechar o soneto com uma solução corriqueira, própria de cenas de taberna, que lhe dá o tom satírico, recorrendo, na maioria dos casos, a alguma expressão popular. Assim compõe-se uma estrutura centrada na sugestão disfémica, podendo ela servir para desmontar as artificiais, mas exageradas, paixões ultrarromânticas, tanto quanto para cortar rente ao chão a árvore vaga das divagações revolucionárias e metafísicas de Antero de Quental. 

O primeiro e o quarto sonetos da sequência «Vinho e fel», com que João Penha abre as Rimas, usam o mesmo estratagema disfémico e Pedro Félix Machado faz isso muitas vezes, por exemplo em «A uns olhos azuis / (ridendo)» (Machado, 2000 p. 51), «Mulheres…» (que tem motivos iguais ao de «Consolação» de Penha), «A uma africana» (Machado, 2000 p. 49) e vários outros. O soneto «Mulheres…» (Machado, 2000 p. 53) foi escrito em Luanda, em 1881, portanto um ano antes de saírem as Rimas de João Penha. Pode resultar de simples afinidade, natural entre dois poetas que seguem a mesma ‘escola’, mas pode resultar também de influência que venha da leitura de poemas de João Penha publicados antes das Rimas – por exemplo nesse periódico A folha, órgão do parnasianismo coimbrão que ele fundou e se publicou entre 1868 e 1873. No primeiro número de A folha foi, precisamente, publicado o primeiro poema da sequência «Vinho e fel», que venho de referir. O quarto soneto da série saiu no segundo número de A folha, muitos anos antes, também, de Sorrisos e desalentos. Tendo sido Alfredo Troni e João Penha, muito provavelmente, conviventes e de certo modo colegas na Universidade de Coimbra, é possível que Pedro Félix Machado lesse João Penha, e ouvisse falar dele com intimidade, em Luanda, no final de década de 1870.

A atualização estética de Pedro Félix Machado explica, possivelmente, por que não são muitas as afinidades entre esta obra e a lírica publicada em Angola, ou a partir de Angola, na época – ultrarromântica, lamurienta, mas ao mesmo tempo camiliana, mordaz e feroz na crítica, na sátira, na resposta quando passa do verso à prosa. Se tomarmos como exemplo a lírica escrita em Angola e publicada no Almanach de Lembranças Luso-Brasileiro, no século XIX, os sonetos aparecem exclusivamente a partir de 1882 (data da publicação do livro de João Penha). Segundo Nelson Pestana, o primeiro soneto escrito por Cordeiro da Mata terá sido composto em 1877. Em Portugal, a escola ultrarromântica, na qual ainda se filiaram Cordeiro da Mata e Eduardo Neves, tinha visto suceder isso com Faustino Xavier de Novaes, poeta que marcou Eduardo Neves; daí virá talvez o culto do soneto por alguns membros da geração de 1878, que não foi prolífico, exceptuando-se precisamente o caso de Eduardo Neves.

Ora Faustino Xavier de Novaes escrevia sonetos satíricos, irónicos, caricaturais, e os de Eduardo Neves eram carregados de alegria e de ironia. O soneto publicado no Almanach por Cordeiro da Mata é satírico também (intitula-se «Messalina»). Os de mais típica motivação romântica publicados nesse periódico da família Castilho, afetadamente exaltados, tecnicamente frouxos e de psicologia triste, pobre, previsível, eram escritos por pessoas menos inseridas nas comunidades locais, pelo que dá para ver das suas biografias e dos poucos escritos que nos deixaram. Não são comparáveis aos sonetos de Pedro Félix Machado, exceto pela componente caricatural. Confirma-nos isso o facto de a distribuição rimática dominante nas composições do Almanach de Lembranças não coincidir com a que o é em Pedro Félix Machado (Soares, 2012 pp. 90-91), como disse próxima de João Penha. Ainda por cima, nenhuma das três ocorrências dessa distribuição no Almanach é importante para descrevermos o corpus poético onde as inserimos.

É certo que o autor nos informa ter escrito determinado soneto em 1870, pelo que teria optado por este esquema estrófico desde muito cedo. Mas a publicação do referido soneto, sob pseudónimo, n’O imparcial, “que em 1887 para 88 se publicava em Luanda”, deu lugar a “que se me imputasse uma alusão que não estava no meu animo fazer”[7]. Pelo que a indicação de 1870 podia apenas ter servido para despistar suspeitas, ou foi mesmo gralha. Note-se que, apesar da nota, o poema vem datado de “Benguella, março, 80”, a pp. 15 da edição original. Em 1870, o poeta estaria com cerca de dezassete anos, em 1880 já é mais provável que tivesse composto o soneto, maduro, com vinte e sete anos e depois de ler A folha.

Tirando esta, a data mais antiga nos sonetos é a de 1878, que é a de início da fase sistemática de publicação de poemas líricos e diferenciados em Angola. Já não é muito distante em relação a 1882, mas é, de qualquer modo, anterior à dos outros membros da geração de 1878, ou de 1880. Note-se que esse é o ano decisivo para o jornal de Alfredo Troni, que marcou a exígua comunidade literária angolense. 

Quer isso dizer que, com o advento da geração do Jornal de Loanda, em 1878, já Pedro Félix Machado tinha definido as escolhas técnicas que levariam aos Sorrisos e desalentos. Na composição de 1878, provavelmente a mais antiga do livro, há o tom irónico ou satírico dominante nos outros textos seus, e a distribuição rimática é igual à dominante em João Penha. Ora, no corpus estudado anteriormente (o do Almanach de lembranças), os primeiros sonetos publicam-se em 1882, e o primeiro significativo em relação à prática lírica dos angolenses saiu em 1884. Não virá, portanto, da comunidade literária local a sua preferência, tendo sido provavelmente marcada antes por João Penha e pelo parnasianismo em geral, então emergente no espaço lusógrafo. Pode-se aliás dizer que, de Luanda e de Benguela, Pedro Félix Machado contribuía também (contributo modesto e ignorado) para o aparecimento dessa corrente literária. Não se limitou a importá-la, participou da sua criação na língua portuguesa.

A primeira estrofe do soneto «Efeitos de Calor», escrito em Madrid em Agosto de 1891, reúne as principais caraterísticas deste parnasianismo angolano. Cito-a (Machado, 2000 p. 47):

Eu sinto devorar-me íntima chama;
Não tenho fibra em mim que não palpite;
Nem célula que a chama não excite,
E sofro como sofre quem muito ama.

Qualquer ultrarromântico de 1878 escreveria o primeiro verso, por exemplo Cordeiro da Mata. É bocagiano também esse ultrarromantismo, como se pode ler na «Epístola I: Olinda e Alzira»:

[…] e viva chama no íntimo, 
Das entranhas ardente me devora

Recorde o leitor que Bocage constituía, precisamente, uma das grandes referências de Olavo Bilac e de Guimarães Passos, logo, do parnasianismo brasileiro.

Quanto aos restantes versos, os melhores de entre os nossos ultrarromânticos escreveriam talvez o quarto. Mas a chama de Pedro Félix Machado faz palpitar as “fibras” do seu corpo, excita as “células” do seu corpo, marcando por aí uma propriedade literária. A chama imaterial do amor, assim, torna-se física e socorre-se de termos técnicos, num procedimento que veio a tornar-se parte fundamental da arte poética de Augusto dos Anjos. A estrofe seguinte é quase o relato de uma alucinação tecnológica: 

Tal como da platina a breve trama
Se abrasa na corrente que transmite,
Minha alma s’encandesce, e a dinamite
Do cérebro em delírio, me inflama!

Essa transfiguração da linguagem poética é o seu maior contributo para a literatura angolana da época – ainda que, infelizmente, louvando-se embora o autor, ninguém tenha seguido as sugestões estilísticas do poeta.

Falta-nos agora detalhar, com maior exatidão, as leituras que terão levado Félix Machado ao parnasianismo, tão bem e tão cedo. Aqui entra uma outra figura já referida, o ficcionista Alfredo Trony – que hoje grafamos, com toda a razão, Troni. Ele foi muito importante no reduzido sistema literário angolense do século XIX. Tornou-se um dos primeiros ficcionistas nossos – a par, justamente, de Pedro Félix Machado. Criou e dirigiu o Jornal de Loanda, onde publicou artigos de intervenção política e literária. Nas páginas desse periódico se revelou toda a ‘geração de 1880’, onde encontramos os nomes de J. D. Cordeiro da Mata e de Pedro Félix Machado – os dois poetas que, juntamente com Maia Ferreira, formam a tríade de líricos angolanos com livro publicado no século XIX.

Em trabalho felizmente consultável em rede, Francisco Topa precisou vários aspetos da biografia de Troni antes desconhecidos, ou mal conhecidos. Isso nos permite, com muito maior segurança, comparar a vida do nosso ficcionista (nosso e coimbrão) com a do poeta João Penha (traçada por Elsa Pereira (Pereira, 2015)) numa fase crucial da formação de ambos. João Penha (29.4.1839) era cerca de seis anos mais velho que Alfredo Troni (4.2.1845). O ingresso de Troni na Universidade de Coimbra, ainda com o apelido Vasques, é, no entanto, anterior ao ingresso tardio de Penha. Na boémia coimbrã terão, porém, coincidido e não só no tempo. Digo não só no tempo levando em conta que Troni terá frequentado círculos afetos aos realistas, à chamada ‘Escola de Coimbra’.

Num artigo hoje menos conhecido, o ficcionista critica de forma desabrida o livro de poemas Espontaneidades da minha alma, de José da Silva Maia Ferreira, mas numa frase breve, acrónica, logo em seguida compensada por um retrato simpático, já citado neste blogue-livro a propósito da poesia do luandense. O livro de Maia Ferreira – primeiro de um angolano a ser publicado em Angola – deve ter-se tornado conhecido e conceituado na colónia. Quando se imprimiu (muito provavelmente no começo de 1850) ainda o ultrarromantismo lusógrafo, ou a segunda e a terceira geração românticas, estava a consolidar-se nas respetivas comunidades literárias. Até mesmo em relação a Gonçalves Dias, poeta mais velho (quatro anos) e que foi uma referência para Maia Ferreira, as datas de publicação dos livros não diferem muito da data das Espontaneidades. Apesar disso, Troni vai criticá-lo, entre outros motivos, por escrever uma poesia ultrapassada. Nos seus argumentos transparece a influência da ‘escola coimbrã’, tal como sucederá, mais tarde, com a novela-romance Nga mutúri. Mas o anacronismo na leitura de Maia Ferreira foi, sem dúvida, leviano – se a leviandade viria da boémia académica já não sei. Termina, como disse, compensando ao retratar Maia Ferreira como jovem gentil e instruído...

Troni conviveu, portanto, muito possivelmente, com João Penha no efervescente meio estudantil da Coimbra dos anos 60 do século XIX. Ali conviveram, com proximidade apesar das diferenças, os grupos da ‘escola de Coimbra’, protagonizado por Antero de Quental, e de A folha, capitaneado por João Penha. Vários colaboradores de A folha pertenciam à primeira geração realista, incluindo Antero de Quental. É, portanto, muito provável que Alfredo Troni tenha levado para Angola notícias de A folha, do parnasianismo e de João Penha - a par do realismo e dos realistas. É também muito provável que Pedro Félix Machado tenha recebido de Troni informações, bibliografia e lições sobre as novas escolas literárias. Recordemos que Félix Machado teria vinte e cinco anos quando se iniciou o Jornal de Loanda e que a posição dominante de Alfredo Troni já se fazia notar na altura, a par das firmas consolidadas do pai e do tio de Pedro Félix Machado – açorianos de origem, de uma família onde havia licenciados (caso de Francisco Félix Machado, que se formou em Direito por Coimbra entre 1852 e 1856 e era natural da vila de Nordeste, S. Miguel, Açores), que vieram de Pernambuco para Angola, instalando-se na capital desde, pelo menos, o início dos anos 50, ou seja, desde, mais ou menos, a data em que José da Silva Maia Ferreira abandonou o futuro país. O exemplar de Por montes e vales, ainda conservado na Biblioteca do Governo Provincial de Luanda quando por lá pesquisei, face a estes dados, é de calcular que tenha chegado pela mão de Alfredo Troni. Se ele mantinha interesse (ou qualquer outro leitor) em Penha ainda nessa época é porque o nome do sátiro de Braga ressoava entre nós com sonoridades positivas.

Os canais de aproximação que explicam as leituras e influências do parnasianismo não terão sido só estes. Estes hão de ser, talvez, os mais importantes. Houve outros de que, a seu tempo, darei notícias. Houve, também, os que se prenderam com a história literária angolana. Para os quais passo agora:

A um outro nível de leitura, o das interpretações e valorações feitas sobre a lírica do século passado em Angola, um verso nos ajuda a compreender melhor uma passagem de Maia Ferreira. No poema em que elogia a sua terra, o poeta das Espontaneidades fala em “donzelas de planta mui breve”. Isso deu azo, como já referi, a que alguns críticos despromovessem a passagem, acusando o seu autor de nada mais ter para notar além da pequenez dos pés. A “planta mui breve” descreve, no entanto, um aspeto, o da leveza, que é um tópico do paradigma feminino da época e desde os tempos do Império romano (pelo menos). Vamos encontrar esse mesmo tópico no «Retrato á Penna» (Machado, 2000 p. 19), feito na cidade de Toledo, em Agosto de 1891. O poema é um feixe denso de relações intertextuais, estabelecidas em particular (e na sequência de vários outros) com o soneto de amor camoniano, e diz a dado momento: “Os pés em que é milagre se sustente”. A ideia de leveza da “planta mui breve” de Maia Ferreira foi reescrita assim — com mais requinte artístico, sublinhe-se.

Ainda a esse nível, é interessante ver como trata Félix Machado outro tópico ligado na época à beleza feminina. A alvura dos dentes, imagem recorrente nos poemas do século XIX, em que escritores portugueses e brasileiros retratam elogiosamente a mulher negra, também não surge, como em dado momento se pensou, por não verem esses poetas nada mais interessante nelas. A alvura dos dentes era uma parte do mesmo paradigma feminino, que tanto se aplicava à mulher negra quanto à que Pedro Félix Machado vislumbrou em Toledo nesse mês quente de 1891. A menos que (hipótese igualmente estimulante) o escritor visse numa morena espanhola os atributos que brasileiros e portugueses viam só na mulher negra — a menos, portanto, que ele a visse com olhos africanos. E daí que repare no “lábio quente”, na “pétala vermelha” da boca, nos “relâmpagos” do “seu olhar”… tão fulminantes quanto os do fogo que Maia Ferreira vira em outros olhos antes, pouco antes de nascer o sonetista de A semana.


A figura de Pedro Félix Machado e a sua obra não se esgotam nestas linhas. Elas suscitarão muito mais desenvolvimentos e é para isso que existem. As que deixo aqui são somente um pequeno contributo para a espiral da quinda, ou da cesta, que se mantém aberta para cima e fechada para baixo.

Como citar:
Soares, Francisco. “Pedro Félix Machado.” Kicola: livros e leitores em Angola no século XIX. Editado por FS. FS. 2020. https://kicola.xn--svisto-bxa.com/p/pedro-felix-machado.html (acedido em 29 de jul de 2022).
(norma: Chicago). 







[1] V. o parentesco com o título completo de Scenas de África / ? / romance íntimo.
[2] V. A semana, nºs 8 e 10.
[3] Na p. 36 da edição original (Machado, 2000 p. 64) há uma data (“Lisboa, novembro, 81”) que deve ser gralha (por 1891).
[4] Na BNL há só os números 1, 2, 8, 10, 14 e 21. Neste último número (de 24-7-1893) aparece como editor e redactor Paulo Cardozo. O nº 2 indica tratar-se de uma “folha hebdomadária”.
[5] O que marca uma posição política, porém com antecedentes históricos até, pelo menos, Gil Vicente  em Portugal. Acrescente-se que o autor era ateu, mas de um ateísmo paradoxalmente místico, semelhante ao de Antero de Quental na poesia portuguesa (cf. sonetos das pp. 34 e 37 da ed. original). A crítica aos usurários seria, talvez também, uma crítica aos judeus.
[6] O motivo estava muito em voga entre os ultrarromânticos angolenses, mas já era ironizado muitas vezes.
[7] Segundo a nota que o poeta faz ao referido soneto.

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